domingo, 29 de janeiro de 2012

Millennium 1 - Os Homens Que Odeiam as Mulheres, por Tiago Ramos



Título original: The Girl with the Dragon Tattoo (2011)
Realização: David Fincher
Argumento: Steve Zaillian

A versão americana do primeiro tomo do thriller sueco escrito por Stieg Larsson não começou bem perante a crítica por um simples e único motivo: já a havia antecedido uma versão sueca, com bastante sucesso internacional. E o julgamento prévio daquilo que muitos chamam remake (por si só desnecessário) não ajudará à opinião final. Antecipo com estas palavras para dizer que apesar da inevitável comparação com a versão sueca de Millennium 1, realizada por Niels Arden Oplev, não considero este filme um remake da obra sueca, mas sim uma nova interpretação do livro que lhe deu origem. Isto porque se era praticamente impossível fugir ao resto escrito (um romance que está escrito já com uma visão cinematográfica muito própria), David Fincher conseguiu imprimir-lhe o seu cunho e dinamismo de uma forma impressionante. É difícil não comparar as duas versões, mas a conclusão final é que ambas são excelentes, cada uma à sua maneira e que a versão americana não desilude de forma nenhuma.

Millennium 1 consegue desde logo manter uma atmosfera simultaneamente fria e intensa, de uma forma tão urgentemente obsessiva como David Fincher sempre nos habituou. Isto porque o cineasta recupera inevitavelmente uma equipa de sucesso, de onde se incluem os editores Kirk Baxter e Angus Wall, o director de fotografia Jeff Cronenweth e os compositores Trent Reznor e Atticus Ross, num filme que recupera uma certa atmosfera dinâmica semelhante à de The Social Network. A principal questão não será a história, já praticamente reconhecida por muitos por via da leitura dos livros ou pela versão cinematográfica sueca e que desvenda desde logo o mistério da trama. O principal aqui é o tratamento dado à história que, sem alterar o original, adiciona subtilezas em relação à versão sueca e que de certa forma o beneficia. Uma delas é o enfoque maior dado à construção das personagens, a par do mistério principal, dando-lhes maior destaque, permitindo ao espectador um sentimento maior de introspecção. O envolvimento com as personagens é inevitável, sendo-lhes atribuídas nuances curiosas e maior destaque em outros casos (no caso da personagem Erika Berger, por exemplo), nunca fugindo da história original, mas sem omitir factos importantes. David Fincher consegue recriar tudo isto numa elegância clínica (diria até sueca) que a versão nórdica não conseguiu, uma metáfora perfeita para uma sociedade tão funcional e organizada, como tão escura e dura, repleta de esqueletos no armário e que a personagem interpretada por Per Myrberg o reflecte, em tão breves minutos, numa irónica referência ao IKEA. Esta obsessão pelos pormenores é evidente na forma como David Fincher que não só estiliza (momento único e negro, ao som de Orinoco Flow, de Enya), como mantém a sua identidade, tão flagrantemente visível em outras obras como Zodiac ou The Social Network, através de uma densidade única, não só em ambiente como também em narrativa. E se na altura de estreia da versão sueca manifestei o meu agrado por ser uma versão violentamente fria como nunca se faria em Hollywood, é curioso perceber que esta versão consegue manter essa perversão e crueldade das personagens de uma forma igualmente perturbadora. 

O casting de Millennium 1 - Os Homens Que Odeiam as Mulheres é todo ele magnífico. Especialmente porque e se falamos em comparações, grande parte dele é superior à versão sueca, de onde se destacam desde logo a escolha de Daniel Craig como Mikael Blomkvist, como também a outras mais secundárias como Steven Berkoff e Joely Richardson. A prova de fogo seria com certeza para a novata Rooney Mara que tem a tarefa ingrata de pelo menos igualar uma figura icónica recriada por Noomi Rapace de uma forma magnífica. Mas o trabalho de Rooney Mara revela inteligência ao não querer replicar o trabalho da sueca, mas atribuir-lhe novas perspectivas. Não quero com isto destacar uma composição sobre a outra, pois são ambas excelentes, mas o contraste evidencia-se logo com uma Noomi Rapace bem mais fria e anti-social que a americana e praticamente invulnerável. No caso da Lisbeth Salander de Rooney Mara encontramos uma figura que mesmo apresentando uma agressividade evidente e uma clara inadaptação à sociedade, consegue transmitir uma grande vulnerabilidade e carência. É uma versão mais humanizada da protagonista. E se para muitos é a gota de água nesta composição, não deixa de transparecer uma maior honestidade na construção da personagem e de certo modo, mais aproximada à versão de Stieg Larsson. Curioso que esta personagem se assemelha bastante à recriação de Mark Zuckerberg em The Social Network, ambas figuras alienadas e à margem da sociedade e inaptas socialmente, presas a redes de informação, fazendo entender o porquê do cineasta ter aceite este trabalho que se insere bastante bem nos seus interesses.

David Fincher destaca-se mais uma vez. E por mais tentador que seja comparar versões, é também igualmente inútil. Neste caso David Fincher apresenta um material não original, atribuindo-lhe uma visão muito própria, digna da sua marca e até reflectora do seu percurso cinematográfico (os impressionantes créditos iniciais ao som de Immigrant Song, numa electrizante versão de Trent Reznor e Karen O, trazem reminiscências do seu trabalho com videoclips). Millennium 1 pode não ser superior à versão sueca, mas traz com certeza uma nova e respeitável visão. E se este tomo não necessitaria tanto de uma nova adaptação, a verdade é que os segundos e terceiros tomos (quase inutilizados ao estatuto de uma recortada minissérie televisiva) pelas mãos do cineasta norte-americana poderão trazer um novo fulgor à obra de Stieg Larsson.



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2 comentários:

  1. Quem lê o livro atentamente e mergulha na trama e nas personagens, nao deixa de ficar desapontado com o resultado deste filme de Fisher, que para lá de uma abertura magnifica, ao som do Cover da musica dos Led Zeppelin por Trent Reznor desmerece o livro na minha opinião.
    Acho que as personagens foram abordadas pela rama, e apesar dos desempenhos consistentes estava á espera mais da adaptação que o filme faz ao livro.
    Quem ve o filme sem nunca ter lido o livro, efetivamente ve um bom filme, com personagens e uma historia que se desenrola a um ritmo alucinante.

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    1. Mas a questão que eu costumo levantar muitas vezes é precisamente essa: deve um filme ser avaliado por si só ou por comparação com o livro? É que são formatos completamente distintos e o que resulta num não tem de resultar necessariamente noutro...

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