sábado, 30 de novembro de 2013

A Mentira de Armstrong, por Carlos Antunes


Título original: The Armstrong Lie
Realização: Alex Gibney
Argumento: Alex Gibney
Elenco: Lance Armstrong, Reed Albergotti, Betsy Andreu

Uma da hipóteses mais tentadoras, e que se espera que o DVD proporcione, é a de ver o documentário que existia antes da revelação do ciclista. Com a narração de Matt Damon já terminada há uma suspeita de que o filme original seria laudatório para Lance Armstrong ou, pelo menos, tê-lo-ia como origem de uma consciência social liberal (basta pensa que o actor foi narrador de Inside Job) favorável ao homem e ao que ele representava.
A forte mudança na orientação do filme que resultava do acompanhamento de Alex Gibney a Armstrong será um documento da nossa Era mais poderoso do que o filme visto, pelo que a visão comparativa dos filmes pré- e pós-entrevista a Oprah seria essencial.
São dois os tópicos - e intimamente ligados - que dessa visão sequencial saírão esclarecidos: o comprometimento humano do documentarista (por mais objectivo que tente ser) e a força de projecção global de uma imagem propagandística.
Tópicos que estão neste The Armstrong Lie mas que acabam por não ser tratados a fundo, porque não são o foco absoluto do filme e porque tocam (e comprometem, em parte) pessoalmente Gibney que confessa ter-se sentido fascinado pela figura do corredor a meio das filmagens que coincidiam com o retorno ao Tour e a uma brilhante (mas suspeita) etapa.
Como a mentira obrigou o realizador a fazer uma pesquisa mais profunda, incluir os pontos de vista antagónicos e, mais importante, confrontar-se com aquilo que viu mas não registou - nem em câmara, nem para si próprio como sendo relevante - esta acabou por se tornar num benefício para o filme, que se afasta da intimidade de Armstrong - tópico nada interessante.
Em direcção a uma abordagem alargada dos meandros promíscuos onde o desporto e a cobertura mediática se encontram.
A capitalização da direcção da prova Francesa de um herói puro surgido após um grande escândalo de doping e o aumento de audiências para o ciclismo proporcionadas por um sobrevivente de cancro que vence uma das provas mais duras do desporto moderno criaram o espaço nebuloso em que se tornava necessária uma protecção oficiosa (ou até mesmo oficial, tema que outros deverão desenvolver) ao corredor, a par de um elogio acrítico para garantir os seus favores.
Criaram ainda um sentimento de poder e impunidade em Lance Armstrong, que se aproveitava dele para controlar - e, no mínimo, humilhar - as vozes que contra ele se levantavam.
Mas o pior que criaram foi mesmo o excessivo grau de encantamento de Armstrong com a sua figura e o símbolo que dele faziam.
Só isso explica o seu regresso à competição já sem idade para tal e após muitos anos de polémica intensa acerca das suas vitórias.
Só isso explica que além de um sucesso pessoal, Lance Armstrong tenha falado desse regresso como um sucesso colectivo para todos aqueles que sofrem de cancro e para a sua própria fundação.
Só isso explica que Armstrong tenha deixado pela primeira vez uma equipa de filmagem acompanhar a sua intimidade mesmo sem saber como decorreria o seu regresso à competição - mas que ele assumia ver a ser bem sucedido.
Essa equipa de filmagem, no momento da revelação, passou a ter material priveligiado que pôde ser usado em desfavor do ciclista, o que permitiu a Alex Gibney exigir-lhe uma explicação; não total mas menos controlada do que a feita no programa de Oprah.
O interesse cinematográfico para esta história de Ícaro moderna advem da sua pertinência, por ter sido captada enquanto acontecia (ou o mais perto disso).
A mentira de Armstrong foi o golpe de sorte que recaiu sobre o realizador porque o obrigou a ser o documentarista apreciável de Taxi to the Dark Side e Gonzo: The Life and Work of Dr. Hunter S. Thompson.


Sem comentários:

Enviar um comentário