segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Ilo Ilo, por Carlos Antunes



Título original: Ilo Ilo
Realização: 
Argumento: 
Elenco: 


Ilo Ilo é um filme de rara atenção ao detalhe. Nas mais ignoradas decisões o filme encontra a matéria pela qual expressa as emoções e os julgamentos de umas personagens em relação às outras e até em relação à sua própria posição no mundo.
A banalidade de uma mulher limpar a tampa da sanita que o marido deixou suja ou de um homem rejeitar que seja a empregada a lavar o uniforme ganham uma relevância que assombra o público.
Um assombro nascido do reflexo que esses momentos têm no comportamento quotidiano de todos os que se sentam defronte do ecrã.
Pela particularidade da vida daquela família Anthony Chen dá-nos uma visão de uma realidade globalmente ressonante que não perde a singularidade da sua origem.
Que se passe há duas décadas atrás em Singapura, durante a maior crise financeira que afectou a Ásia, poderá ser uma coincidência significativa para o público ocidental mas ainda mais uma lição de como se terá de aprender a lidar com o presente quando ele se tornar uma memória.
O filme beneficia da ausência de uma intenção veicular relativamente a censuras morais dos comportamentos de então.
A visão discriminatória entre empregadores e empregados estabelece-se com a mesma imparcialidade da atrapalhação que os diferentes ritos religiosos causam no momento da refeição.
A realidade acontece e a reflexão que dela ou sobre ela possa ser feita não pertence ao domínio do realizador que consegue levar a sua câmara a desaparecer por completo, transformando composição (de cena) em observação.
O esquecimento da existência da separação entre público e intérpretes acontece tanto por causa do realizador como dos seu actores, cuja naturalidade não deixa de ter contornos interpretativos marcantes.
As mulheres vincando a memória da sua intervenção mais do que os homens, tal como é natural nas personalidades das suas personagens; com o pai a manter-se expressivo pelo silêncio (e pela ausência, mesmo quando está em cena); e o rapaz a desabrochar como actor em simultâneo com o desabrochar da sua personagem.
Pertence aos actores o coração do filme onde está a evolução da relação entre a criança e a sua ama. Da caprichosa rejeição inicial à dependência emocional.
Tal como à sua volta - e talvez quase tão importante - está a história de um casamento no seu momento mais difícil, do reestabelecimento dos laços entre marido e mulher, pai e mãe.
Por mais tocante que essas histórias de aproximação sejam, são também a mais significativa pecha do filme.
Elas são o contrário das observações que Chen faz dos detalhes: a expressão das histórias é uma marca da sua banalidade.
Não duvido que seja o que vemos seja uma representação realista da maioria das relações entre crianças e as suas amas.
Não evita que tal se tenha transformado num lugar-comum da ficção, surgindo aqui como uma estrutura demasiado repisada.
A falta de algo de novo a dizer sobre aquelas relações - em vez de à sua volta encontrar o singelo significativo - evidencia o esquematismo da história.
Não sendo insatisfatória também não consegue justificar o espaço central do "conflito" que lhe é concedido.
Mostra ser um suporte sólido para a construção da identidade de Anthony Chen como realizador mas uma certa debelação que sentimos das possibilidade da mesma fazem-nos crer que ele deveria ter ido mais além na agregação dos elementos diferenciadores exteriores ao núcleo familiar.
A cena em que Terry corre para ver Jialer receber o seu castigo escolar - vergastadas públicas - é uma das mais interessantes cenas e argumento em favor disso mesmo. A angústia da ama para com o seu menino a levar-nos de encontro à percepção profunda da mentalidade rígida - ditatorial? - da educação e do próprio país.
Por mais convincente que já seja a sua relação com a herança de Yasujiro Ozu, não está apurada.
Esta família é o ponto de intersecção das realidades sociais quando deveria ser o epicentro ressonante das mesmas. As particularidades sociais gravitam em torno da família mais do que se expressam nas relações internas.
Outras heranças fílmicas são menos evidentes para bem do realizador, pois estão também menos bem resolvidas.
De Abbas Kiarostami obtem o realizador a noção do espaço fechado do carro como impulsionador do diálogo - ou da confissão - mesmo que feroz.
Só que as cenas em que tal ele reproduz acontecem sem uma progressão efectiva para o momento seguinte do filme. Uma delas decorre mesmo numa condução por engano que conduz a lado nenhum senão a uma inversão de marcha e ao fim da própria cena.
São dificuldades de um primeiro filme e da construção de uma personalidade que não apagam as valorosas indicações que Anthony Chen já nos dá.




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